Este texto foi publicado como editorial no Magazine DINÂMICAS #2 do curso de Design de Produto da Escola Artística de Soares dos Reis com o tema "Interações"(disponível neste link)
Formei-me pintor e acreditava, na altura, que a minha arte se fazia sozinho. Era semeada com os outros, sim, mas colhida numa solidão nem sempre fácil, como são todos os olhares para dentro. Gostava da solidão do fazer. Essa solidão realizava-se num silêncio que era, para mim, mais a ausência das palavras dos outros e sobretudo das minhas do que a ausência do som.
Embalava-me no fazer difícil da pintura. Sentia a tinta macia a espalhar-se, transparente, muito transparente, sobre uma tela cuja textura suave do papel de jornal lá colado me dava um prazer sublime. Os azuis, uns por cima dos outros, deixavam composições que me interessaram sempre mais a mim do que aos outros. Era uma coisa minha e por muito que gostasse de a partilhar nunca comunicou para fora com a eficácia que eu lhe imaginava naquelas formas ambíguas cheias de ironia e impossibilidade.
Um dia a escola abateu-se sobre mim com tanta força que o exigente exercício emocional de pintar se tornou insuportável. Precisava de calma e paz para depois as poder destruir na pintura. Sem essas a pintura era impossível. Nunca pintei para me curar de nada, antes pelo contrário.
Parei de pintar sem nenhum sentimento de perda definitiva. Os desafios que se me puseram punham à prova toda a minha capacidade de sonhar estruturas e de fazer coisas. Desenhava sem lápis sobre outros papéis mas comunicava mais e continuava a tentar fazer mossas na realidade teimosa.
A escola é um lugar diferente do atelier, da tela branca. É o lugar da partilha e do contacto humano constante. Deve ser o lugar da impossibilidade da solidão. Mas o que a torna diferente dos outros espaços e organizações do humano é a sua missão de contaminação. É o espaço da contaminação do conhecimento, do aprender a viver que não acontece em casa, do aprender a conviver com o outro, com a diferença. Contaminamo-nos uns com os outros constantemente. A solidão, quando acontece na escola, é patológica. É fruto do abandono, do isolamento, e contraria a sua identidade orgânica e coletiva.
O egoísmo também não tem lugar na escola. Não se faz nada sozinho. Ninguém deve ser abandonado a fazer sozinho. Uma escola é uma rede de gente a tratar com gente. Não fazemos parafusos nem vendemos seguros. Fazemo-nos gente. A todos. Por cada aluno que se constrói na partilha da escola vários professores se fazem, se transformam tanto como os seus alunos.
Esta partilha exige de cada um a capacidade para se conectar mas também a liberdade de se transformar, de crescer livre.
Este coletivismo, apesar de tudo, não assenta na diluição do indivíduo. Pelo contrário, constrói-se com indivíduos e estrutura-se na singularidade de cada um. A escola não é uma massa amorfa mas uma rede de nós, todos diferentes e todos livres.
Chamam à escola um "caos organizado" e com razão, mas esse caos não acontece por desleixo, é o caos do humano em ação. A escola deve obedecer cada vez mais a uma organização rizomática, em transformação permanente. Capaz de incluir cada um. Capaz de se alargar e conectar com outras estruturas. Sem perder a sua orientação, a sua razão de ser.
A Soares dos Reis, como as outras escolas artísticas, é uma escola do aprender do fazer. Do fazer com sentido, tão estruturado como criativo e livre. O conhecimento tem um resultado expressivo nas escolas artísticas. Não fica guardado nas dobrinhas do cérebro à espera de um questionário qualquer que o reifique num diploma ou numa classificação.
O sentido coletivo do fazer, do construir coisas, dá à Soares dos Reis um ar estranhamente homogéneo ao olhar estranho. Nos momentos mais acelerados, como é o final do ano, parece uma instituição em transe. Não podemos admitir que alguns desses olhares estranhos, vindos de cima, nos considerem menores ou menos capazes apenas por sermos produtivos, por fazermos coisas. Nas escolas também se aprende fazendo. Se calhar só se aprende fazendo.
Não podemos admitir que, de cima para baixo, a ignorância e a opacidade dos princípios destrua o sonho dentro de cada um que procura o seu sentido, o seu lugar no meio dos outros humanos.
As escolas de arte serão sempre portas para a realização de sonhos. Lugares para sonhadores. Sonhadores corajosos, sonhadores descarados, sonhadores em missão. Nessa missão é importante não esquecer que somos um coletivo de indivíduos, todos diferentes e todos ligados entre si. A fazer coisas ao mesmo tempo, coisas por vezes diferentes, por vezes iguais, com ritmos diferentes, objetivos e sentidos múltiplos mas sempre com o apoio uns dos outros.
A missão da Soares dos Reis é ajudar a concretizar esses sonhos. É ser o espaço organizado onde essa rede de indivíduos se suporta e se constrói livremente. Todos somos responsáveis por permitir ao outro que alcance o seu objetivo e esse é o verdadeiro propósito de uma comunidade educativa artística.