quinta-feira, janeiro 26, 2006

o menino sem coração: Parte 1


O menino sem coração é um ser macrocéfalo, aparentemente sobre-intelectualizado mas que não sabe nada. Nada de nada. Apresenta um buraco no peito, lugar onde se deveria encontrar o seu coração, e ocupa o desmedido e inchado cérebro na insolúvel questão de perceber o que são os sentimentos e onde, dentro de si, os deve procurar. A procura cansa-o e ele, prestes a desistir, começa a acreditar que de facto não os possui de todo.
O seu mundo, pobre de conteúdo, é demasiado esteticizado, como se procurasse a perfeição em todas as formas. A beleza é uma obsessão para o menino sem coração. Ele não consegue controlar a sua necessidade de consumo de beleza e, no entanto, não faz a mínima ideia de como lidar com ela. Por vezes, no redemoinho furioso da sua dependência, o menino sem coração perde toda a noção do seu corpo e da sua existência material, isto porque nada é belo e tudo é belo simultaneamente.
Para além dele só mais um ser existe no seu mundo. O melro. O melro é o falso companheiro do menino sem coração. Faz-lhe muitas vezes companhia mas tem pouca paciência para o aturar. O melro foi aprisionado neste mundo pois é a única criatura que o menino sem coração consegue conceber existir consigo. Na realidade ele faz parte da própria existência do menino sem coração e existe apenas por ele, assim como todo o seu mundo. O melro, no entanto, não tolera a existência do menino, preferindo, caso lhe dessem a escolher, não chegar sequer a existir.
Deveria, caso a lógica governasse esta história, o menino sem coração ser omnisciente de todo o seu mundo, uma vez que foi ele a causa de tudo... o seu criador. A realidade, se de tal se pode falar neste caso, é que ele não faz a mínima ideia dos sentimentos do melro e é o primeiro a temê-lo mais o seu bico laranja, assustadoramente belo. O melro representa uma imprevisibilidade simultaneamente atraente e indesejável ao menino sem coração uma vez que ameaça, a qualquer momento, a destruição total do mundo por si criado.

Este mundo, povoado de arestas vivas, fruto da união de planos impossíveis, com alguns espinhos à mistura, que surgem aqui e ali com alguma surpresa mas também com muita pertinência, não possui cores. A luz é reflectida vezes sem conta de uns objectos para os outros como se de um jogo de espelhos se tratasse. Parece, a certa altura, que todos os objectos, se tal lhes podemos chamar, habitantes deste mundo, rejeitaram totalmente a sua absorção mantendo, dentro dos seus corpos, uma absoluta ausência de calor, criando no seu exterior um espectáculo de uma beleza e luminosidade insuportáveis ao comum olho humano.
É estranho que toda esta beleza esteja concebida de forma tão fria, quase utilitária. Ela surge em directa contradição com o profundo desejo do menino sem coração, que é o do encontro dos sentimentos. Tanto espaço, tanto tempo, desperdiçados nesta ideia vaga, quase transparente de uma personalidade... um falhanço absoluto. O simulacro perfeito da existência de uma inteligência constitui-se como uma espécie de crime quase perfeito, não fosse a vítima ser o próprio perpetrador e assim, o crime, continuamente revelado numa espécie de ciclo vicioso.
Os pensamentos que ocupam o enorme cérebro do menino sem coração constituem-se como uma fórmula secreta de um eterno vazio, de um funcionamento desenfreado e sem sentido como uma qualquer máquina futurista que não serve qualquer propósito de produção concreto. Poderíamos ficar horas a dissertar sobre a impossibilidade da compreensão a que estão votados tais pensamentos, mas a verdadeira razão da sua existência prende-se sobretudo com a real inexistência de qualquer tipo de interlocutor, alcançando dessa forma o verdadeiro sentido da inutilidade absoluta.

A solidão é algo que nem sempre importa , nem sempre é o que ocupa o grande cérebro. É no entanto aquilo que mais se assemelha a um sentimento. É o supremo momento de liberdade, de independência. Estar só.
O menino sem coração está só. Essa condição é provavelmente o mais importante alicerce de toda a estrutura do seu mundo.

1 comentário:

Diana Paula Soares disse...

quero ler isto. x)

e lá estão os desenhos do principezinho... é que faz-me mesmo lembrar por mais diferentes que sejam. ö

eu gosto tanto do principezinho...