domingo, novembro 10, 2013

Cristiano, Leonel e a relatividade dos sucessos

Cristiano e Leonel são dois meninos que gostam muito de jogar à bola. São ambos grandes adeptos do mesmo clube da primeira divisão. Cristiano é filho de dois operários de uma fábrica. Os pais de Leonel são licenciados e quadros superiores na mesma empresa.

Desde os seis anos que Cristiano e Leonel jogam numa equipa de futebol. Cristiano está inscrito na escolinha do clube lá da terra, paga uma mensalidade simbólica. Leonel está inscrito numa escola de futebol na cidade, paga uma propina muito mais alta. Três vezes por semana lá vão para o treino durante hora e meia. No fim-de-semana os jogos.

Os pais de Cristiano, com muito esforço, lá lhe compraram umas botas para jogar e uma bola. São das mais baratas. O terreno de jogo é um pelado, às vezes uma autêntica piscina de lama, mas as condições têm melhorado. A Junta e a Câmara uniram-se e fizeram umas obras. Até contrataram um treinador formado.

Leonel recebeu novinhas umas botas de marca. Cores garridas e pítons especiais para o sintético da escola de futebol. A bola é com desenhos verdes, igual à do mundial. "É super levezinha!" diz Leonel orgulhoso aos amigos. Com a propina paga-se também o equipamento que inclui os calções, as camisolas, os fatos de treino e até as caneleiras. É ver o Leonel vaidoso e vestido a preceito, com a bola debaixo do braço.

Ambos o rapazes estão empenhados na sua atividade desportiva. Em casa os pais de Cristiano acham que é perda de tempo e dinheiro, mas lá o vão apoiando. "Ele nunca será jogador de futebol profissional. É muito franzino" dizem. "Como o pai era".

Em casa do Leonel é diferente. O pai adora desporto e sempre praticou. Ele também joga futsal com os amigos num campo coberto lá perto de casa, duas vezes por semana. Leonel adora assistir aos treinos do pai. Nos fins de tarde Leonel e o pai vão muitas vezes correr para o parque e trocar umas bolas. São os momentos preferidos para o Leonel. A mãe às vezes também vai e faz o circuito de manutenção. Levam lanches leves e chegam a casa muito cansados.

Cristiano quando sai da escola gosta de jogar à bola com os amigos. Às vezes, quando faltam os outros, passa horas a chutar a bola contra a parede. A mãe avisa-o para tirar as botas. "Não as gastes! Olha que não tens outras!"

Quando chove o Cristiano fica em casa a ver televisão. Leonel vai com o pai para o campo coberto do clube. "É muito fixe!".

Antes dos treinos a mãe do Leonel faz-lhe sempre um lanche leve e cheio de energia. "A alimentação é muito importante!", diz sempre a mãe. O Leonel já lhe acaba as frases.

Cristiano come muitos hambúrgueres. Como os pais têm pouco tempo trazem-lhe hambúrgueres e às vezes pizza. "Acaba por ficar mais barato..." ouve muitas vezes o pai a dizer.

Ambos os meninos andam muito felizes lá no clube. O Cristiano deu nas vistas num jogo com a freguesia vizinha. "É muito rápido. Mas precisa de limar umas arestas" disse o treinador ao pai.

Leonel vai com a escolinha a França. É um torneio em que a escola participa. Será uma grande experiência.

Nos jogos do fim-de-semana Leonel tem sempre a presença do pai e muitas vezes da mãe. Dão-lhe um grande apoio e no final reúnem-se com o treinador para ouvir recomendações e conselhos para o Leonel trabalhar em termos físicos e técnicos. O pai de Cristiano também vai aos jogos mas ralha sempre muito com o árbitro e com o treinador da equipa. Cristiano diz ao pai que gosta do treinador e o pai responde com ar sério "O clube não tem condições e ele não quer saber!". É injusto e o pai do Cristiano sabe mas gostava de o ter a jogar na escolinha de futebol privada.

Chega finalmente o dia em que no jornal se anunciam as captações do clube que ambos apoiam. Ficam loucos de entusiasmo. Inscrevem-se e lá vão para o campo do centro de estágio. Cristiano, de autocarro com o pai, botas já calçadas e calções vestidos. A mãe não vai, tem de trabalhar.

Leonel vai num minibus com os outros meninos da escolinha. O pai e a mãe vão lá ter de carro.

Para avaliar os jogadores os treinadores do clube fazem um treino físico, um conjunto de exercícios com bola e um jogo treino. No final publicam num placard uma lista ordenada do jogadores com as respetivas notas. Quem entrou e quem não entrou. Os olhos de Leonel e Cristiano, reluzentes, lado a lado, procuram o seu nome na lista.

Quem acham que ficou à frente na lista e entrou no clube?

As vidas e os processos de ensino e aprendizagem fazem-se em contextos com múltiplos fatores. A nossa mania de fazer listas ordenadas para tudo, unidimensionaliza aquilo que é necessariamente pluridimensional. Os sucessos e resultados de uns não valem o mesmo que os sucessos e resultados de outros porque partiram de condições a priori diferentes.

O sistema de ensino tem uma missão. Ensinar, preparar para a vida numa dimensão comunitária, numa dimensão societária e na dimensão do conhecimento e do desenvolvimento cognitivo. Promover as condições ideais para uma "igualdade de oportunidades" que de outro modo dificilmente aconteceria. Não é papel da escola seriar. Essa função a sociedade faz com particular crueldade e a escola deve ser escudada da perversidade desse processo.

Cada aluno é diferente. Tem sucessos e insucessos diferentes. Nem o seu grau de esforço para alcançar um objetivo pode ser medido de forma linear em comparação com outro. Não sabemos o que se passa lá em casa. Muito menos podemos comparar em listas o seu desempenho em números.

Acho muito bem que o Ministério disponibilize os dados dos resultados escolares e dos contextos sócio-económicos das escolas. Não só dos exames, de tudo. Deveria fazê-lo constantemente em relação às escolas públicas, as que estão na sua alçada. Antes de os divulgar aos jornais deveria trabalhar referenciais e discuti-los com as escolas. Os pacotes de dados deveriam ser do conhecimento prévio das escolas.

Ninguém sabe quem fez mais trabalho, quem criou mais-valias educativas com trabalho importante com os alunos. Ninguém sabe que práticas pedagógicas e programas tiveram sucesso na construção dessas mais-valias. Só se mede a quantidade. Como em tudo.

O que se assiste anualmente nos jornais aquando da publicação destes rankings é a demonstração de que temos muito a fazer dentro das escolas para melhorar as leituras que se fazem do mundo e da sua natureza diversa. Talvez um dia, no futuro, os nossos alunos, então adultos, se riam da nossa santa ignorância quando se lembrarem do entusiasmo bacoco que a publicação destas listas provocava nos jornais.

Isso sim seria um sucesso educativo que eu gostava de poder assistir.

 

sexta-feira, novembro 01, 2013

A Reforma do Estado e a Educação. (um rascunho)


"Reformar o Estado, é também democratizar a autonomia das escolas e reforçar a autoridade do professor no novo estatuto do aluno. Concluíu-se um regime descentralizado de gestão escolar e a rede escolar teve de ser reordenada, tendo em conta as contingências demográficas e territoriais. Fez-se uma opção pública pela exigência, com a instituição de exames nacionais no final dos ciclos escolares, reforço do Português e da Matemática nos currículos e densificação nas metas curriculares." (Documento "Um Estado Melhor" p. 33) Descarregue neste link a totalidade do documento.

Alguém consegue detetar a incoerência?

Se "reformar o Estado, é também democratizar a autonomia das escolas e reforçar a autoridade do professor" e se se concluiu "um regime descentralizado de gestão" acho curioso que no âmbito de tanta autonomia e descentralização se tenha tomado a opção "pública" pela "qualidade" para todo o sistema assente em medidas centralizadoras. Medidas como mais "exames nacionais", leram bem "nacionais", ou seja de conceção e execução centralizada, em ciclos iniciais do ensino e também o "reforço do Português e da Matemática nos currículos" igual para todo o país, sem olhar às especificidades dos teritórios educativos e das escolas. Ainda mais interessante é o conceito de "densificação nas metas curriculares". Muito bem aplicada o conceito de "densificação" porque se trata sobretudo de densificar e não de melhorar. Foram também essas metas decididas pelo Ministério de modo absolutamente centralizado. Se existe autonomia não é com certeza curricular ou na organização do processo ensino-aprendizagem.

Quer isto dizer que as políticas educativas do Estado, e deste governo em particular, anunciam e proclamam uma autonomia para depois tomarem decisões centralizadas, normatizando a diversidade educativa e esmagando as diferenças e especificidades num enorme almofariz burocrático. O argumento da qualidade, medida em unidades universais, não respeita nenhum tipo de diferenciação e homogeniza as soluções.

Hoje as escolas não têm autonomia para coisa nenhuma. Têm menos do que alguma vez tiveram. Currículos, organização do ano letivo, número de turmas, número de alunos por turma, tipos de cursos, professores, apoios, educação especial, funcionários ou até o refeitório. Para tudo isto existem plataformas com caixinhas onde os números devem encaixar e para tudo isto existem normas burocráticas a cumprir. As inspeções atentam ao cumprimento da lei e só isso, e não à satisfação e ao sucesso dos alunos.

O cumprimento de algumas destas normas tem sido, historicamente, desvalorizado pelas escolas. O controlo do Estado era fraco e assente sobretudo na leitura de resmas de papéis. O exercício de uma autonomia clandestina fez e faz ainda parte da vida das escolas portuguesas que foram encontrando soluções para problemas que fugiam à uniformidade das normas.

Hoje a implementação de um controlo apertado e implacável com recurso a multiplas aplicações informáticas, programadas para o normativismo, obriga ao cumprimento das normas e revela, em última análise, a impossibilidade prática do seu cumprimento por todos.

 

O documento "Um Estado Melhor" apresentado como um guião para a reforma do Estado faz um conjunto de propostas para a educação que merecem reflexão atenta e separada. É interessante realçar a preferência por modelos de gestão contratualizados, seja com as autarquias, com grupos de professores ou empresas privadas, numa lógica descentralizadora mas sempre enquadrada por conceitos de competitividade e concorrência profundamente perversos. Dizer que a "qualidade do ensino é um fator de concorrência saudável entre municípios" é aceitar a ideia de uma luta comercial por melhores alunos ou por melhores escolas em que os que ficam a perder ficam irremediavelmente para trás. No contexto dos territórios educativos parece-me completamente desadequada esta afirmação. Em educação a "concorrência" promove a exclusão social e a reprodução social. Os mais fortes, que é o mesmo que dizer os mais ricos, não deixam nunca de ganhar neste jogo viciado da "concorrência".

Neste sentido toda a lógica da proposta do governo assenta em pressupostos invertidos. De que é necessário, para gerir melhor, descentralizar e contratualizar mas que por outro lado para aumentar a qualidade é necessário centralizar os modelos de avaliação e densificar os currículos.

A autonomia que se promove é sobretudo a da responsabilidade jurídica e financeira e não a curricular, nas escolas na alçada do Estado. Por outro lado abre-se a porta ao aumento do financiamento direto (contratos de associação) e indireto (cheque ensino) do ensino privado apresentado como panaceia para o insucesso educativo, nunca provada na prática, e sem refletir sobre a despesa que esse mesmo financiamento vai implicar num contexto assumido de contração da procura e diminuição da capacidade de investimento do Estado. Os perigos da criação de um clientelismo oportunista no negócio educativo com efeitos irreversíveis na gestão da fatura pública da educação são demasiados. Já temos PPPs a mais. É de concluir que estas medidas vão sobretudo depender, em termos da sua eficácia financeira, de uma diminuição brutal das remunerações dos professores e de uma concorrência fraticida entre os mesmos. O resultado será sempre uma diminuição da qualidade em que mais uma vez a oferta "prime" vai ficar salvaguardada para aqueles que têm mais recursos.

Para terminar é importante destacar a afirmação de que "queremos, em breve, ter no ensino secundário cerca de 50% dos jovens em ofertas profissionalizantes, que permitam o acesso direto a uma profissão útil e necessária à sociedade, não deixando de permitir o prosseguimento de estudos". Esta afirmação, já feita anteriormente pelo Sr. Ministro da Educação, é particularmente interessante. Por um lado porque estes percursos profissionais são indicados, pelo mesmo ministério, para alunos com reiterado insucesso ou com algum grau de insucesso, caso dos vocacionais e dos profissionais respetivamente. Sendo assim dever-se-á concluir que se pretende atingir os 50% de insucesso, na leitura oficial. Talvez de modo a alterar a estrutura social do país e construir uma força de trabalho barata e qualificada apenas para o trabalho menos intelectual. Esta medida visa claramente aumentar a base da pirâmide social, mantendo o topo bem estreitinho e sempre com os mesmos. Por outro lado a igualdade de oportunidades prevista, porque estes cursos "não deixam de permitir o prosseguimento de estudos", é aniquilada pela criação de critérios injustos e impossíveis de superar como são os exames nacionais para alunos que frequentaram curriculos diferentes ou a construção de "médias" ponderadas que desvalorizam o trabalho prático dos alunos e os colocam em clara desvantagem.

O "Estado Melhor" é, enfim, melhor apenas para alguns. A eficácia é sobretudo no modo como se usa muitos para o benefício de poucos gastando menos. É baseado, pelo menos na educação, em lógicas neo-liberais de concorrência que garantem a reprodução social. Procura-se a diferenciação e a autonomia mas de maneira a permitir que o Estado patrocine o sucesso dos que já o garantiram pela via económica.

Pelas medidas até agora implementadas em dois anos de governação, pela escrita legislativa e pela atuação no controlo e gestão do sistema educativo somos inevitavelmente levados a desconfiar das intenções autonómicas e descentralizadoras do governo. O discurso da descentralização e da autonomia é aqui o alibi para a desresponsabilização política e financeira e para a introdução de uma agenda que pretende privatizar e dividir para reinar.