quinta-feira, janeiro 26, 2006

O menino sem coração: Parte 3


Um longo e aguçado espinho atravessava o buraco do seu peito. A dor provocada não era, nem por sombras, suficiente para apaziguar a inquietude e o aperto que sentia. O bico do melro atormentava os seus sonhos, emproado, orgulhoso da sua liberdade. Mais espinhos. Mais buracos. A dor nunca seria a suficiente. Nunca.
Por todo o lado paredes pareciam aproximar-se e o ar, antes tão fino, quase inexistente, tornou-se agora numa nuvem densa, transparente, que sufoca e luta com os corpos que lhe resistem. O menino sabe que este turbilhão que o assalta não tem cura, é um estado permanente. Esta convicção vai ganhando forma, lenta mas firmemente, no seu íntimo. Para quê sair daqui para mais tarde voltar e com menos força ainda. Os espaços são cada vez menores. Sair para onde?

A cabeça enorme tornou-se numa asfixiante e insuportável prisão da qual ele não consegue fugir. Procura sons, cores, espaços e nada parece capaz de impedir o caminho para o descontrolo total.
Desejava o sangue, senti-lo a escorrer, quente. O ardor de uma ferida profunda é infinitamente mais suportável do que o sofrimento que está a ter agora. Mas não há sangue. Não há sangue porque o alívio não é possível, não existem leveza nem alívio possíveis nesta história.

O seu corpo desintegra-se em milhares de pequenos pedaços, mas não é o seu corpo, ele sabe. O que se desintegra é o conceito, a ideia de si mesmo. Uma ideia não mais possível. O corpo é apenas um casulo desabitado. O descontrolo é isso mesmo, uma fragmentação da sua existência. A separação, molécula por molécula, de cada pedaço de si até à inexistência total. Até à negação da sua existência.

Foi isso a que o melro se propôs, negar a existência do menino ao ponto do esquecimento total. O esquecimento é a morte, porque as coisas só existem enquanto encontram um espaço, ainda que pequeno, numa memória. Qualquer memória.
O melro, carrasco eterno, dilacera o menino e o seu mundo da única forma possível. O desprezo. O esquecimento.

O menino sem coração: Parte 2


Fugiu o melro e com ele toda a hipótese de existência do amor no menino sem coração. Ainda que habitado por outra identidade, mais uma, o melro mesmo assim fugiu, acometido pelo mesmo nojo, pela mesma repugnância que outras vezes tinha sentido.
O menino percebe então que tinha arquitectado gaiolas douradas e tal fora o seu desejo de manter o melro junto de si que nunca as tinha vislumbrado de tão reais que eram. Se o amor pelo melro foi o seu primeiro sentimento será também aquele que o levou à consciência do monstro em que se tinha tornado ou que sempre fora.
Era agora no seu peito, onde um buraco morava, que ele sentia, arritmado, um bater louco, desordenado. Um vazio enorme ameaçava o colapso e o menino sentiu próximo o fim da sua existência. Foi então que sentiu uma lágrima. Por amor? Por momentos teve consciência de que já antes o tinha sentido.

Por Amor? Outra vez? O menino sabia que não podia dar ao melro outra alma. Sabia que no momento em que o seu bico voltasse a ser laranja e se abrisse para ele a sua morte estaria próxima.
Olhou à sua volta e os cardos que habitavam o seu mundo cresciam a grande velocidade. Mais pequeno, o buraco do seu coração apertava-se prenunciando o colapso imediato.
Tudo aquilo era ele, ele sabia, mas o bico do melro, aquele laranja forte, dava-lhe a sensação, embora errada, da possibilidade do conforto, e ele dificilmente lhe resistia.
Mas porquê outra alma. Ele sabia que esta não era a primeira. Que o melro já antes o tinha colocado ali… já antes a sua missão, o seu mundo, o buraco do seu peito, tinham sido refúgio, ainda que falsos e inoperantes, contra algo que ele não controlava.
E não era, afinal, ele próprio, no seu mundo, o principal culpado da fuga do melro?

Os picos dos cardos eram agora apetecíveis e inúmeras viagens ao seu encontro pareciam inevitáveis.

o menino sem coração: Parte 1


O menino sem coração é um ser macrocéfalo, aparentemente sobre-intelectualizado mas que não sabe nada. Nada de nada. Apresenta um buraco no peito, lugar onde se deveria encontrar o seu coração, e ocupa o desmedido e inchado cérebro na insolúvel questão de perceber o que são os sentimentos e onde, dentro de si, os deve procurar. A procura cansa-o e ele, prestes a desistir, começa a acreditar que de facto não os possui de todo.
O seu mundo, pobre de conteúdo, é demasiado esteticizado, como se procurasse a perfeição em todas as formas. A beleza é uma obsessão para o menino sem coração. Ele não consegue controlar a sua necessidade de consumo de beleza e, no entanto, não faz a mínima ideia de como lidar com ela. Por vezes, no redemoinho furioso da sua dependência, o menino sem coração perde toda a noção do seu corpo e da sua existência material, isto porque nada é belo e tudo é belo simultaneamente.
Para além dele só mais um ser existe no seu mundo. O melro. O melro é o falso companheiro do menino sem coração. Faz-lhe muitas vezes companhia mas tem pouca paciência para o aturar. O melro foi aprisionado neste mundo pois é a única criatura que o menino sem coração consegue conceber existir consigo. Na realidade ele faz parte da própria existência do menino sem coração e existe apenas por ele, assim como todo o seu mundo. O melro, no entanto, não tolera a existência do menino, preferindo, caso lhe dessem a escolher, não chegar sequer a existir.
Deveria, caso a lógica governasse esta história, o menino sem coração ser omnisciente de todo o seu mundo, uma vez que foi ele a causa de tudo... o seu criador. A realidade, se de tal se pode falar neste caso, é que ele não faz a mínima ideia dos sentimentos do melro e é o primeiro a temê-lo mais o seu bico laranja, assustadoramente belo. O melro representa uma imprevisibilidade simultaneamente atraente e indesejável ao menino sem coração uma vez que ameaça, a qualquer momento, a destruição total do mundo por si criado.

Este mundo, povoado de arestas vivas, fruto da união de planos impossíveis, com alguns espinhos à mistura, que surgem aqui e ali com alguma surpresa mas também com muita pertinência, não possui cores. A luz é reflectida vezes sem conta de uns objectos para os outros como se de um jogo de espelhos se tratasse. Parece, a certa altura, que todos os objectos, se tal lhes podemos chamar, habitantes deste mundo, rejeitaram totalmente a sua absorção mantendo, dentro dos seus corpos, uma absoluta ausência de calor, criando no seu exterior um espectáculo de uma beleza e luminosidade insuportáveis ao comum olho humano.
É estranho que toda esta beleza esteja concebida de forma tão fria, quase utilitária. Ela surge em directa contradição com o profundo desejo do menino sem coração, que é o do encontro dos sentimentos. Tanto espaço, tanto tempo, desperdiçados nesta ideia vaga, quase transparente de uma personalidade... um falhanço absoluto. O simulacro perfeito da existência de uma inteligência constitui-se como uma espécie de crime quase perfeito, não fosse a vítima ser o próprio perpetrador e assim, o crime, continuamente revelado numa espécie de ciclo vicioso.
Os pensamentos que ocupam o enorme cérebro do menino sem coração constituem-se como uma fórmula secreta de um eterno vazio, de um funcionamento desenfreado e sem sentido como uma qualquer máquina futurista que não serve qualquer propósito de produção concreto. Poderíamos ficar horas a dissertar sobre a impossibilidade da compreensão a que estão votados tais pensamentos, mas a verdadeira razão da sua existência prende-se sobretudo com a real inexistência de qualquer tipo de interlocutor, alcançando dessa forma o verdadeiro sentido da inutilidade absoluta.

A solidão é algo que nem sempre importa , nem sempre é o que ocupa o grande cérebro. É no entanto aquilo que mais se assemelha a um sentimento. É o supremo momento de liberdade, de independência. Estar só.
O menino sem coração está só. Essa condição é provavelmente o mais importante alicerce de toda a estrutura do seu mundo.

segunda-feira, janeiro 23, 2006


je est un autre

Um corpo, um objecto, uma ideia de retrato, de auto-retrato... uma ideia de máquina, máquina viva.

Para que serve?

Para onde se move?

Por que raio funciona?

A inutilidade absoluta como objectivo máximo de uma máquina terrorista. Tornar tudo inútil.

Paradigma do anti-entretenimento, inimiga do pragmatismo capitalista, a máquina move-se sem que se perceba o seu movimento, a sua razão.

A máquina é o corpo do artista em movimento perpétuo. Em busca do zero absoluto. Falso corpo que se instala como vírus informático na estrutura mental do observador. Predadora do pensamento racional, reage a qualquer conceito, qualquer ideia de ordem.

Um texto, poema maldito, desconcertante pela sua aparente facilidade consumista, ilustra de forma enganadora as imagens propostas, ideias de identidade. Significações inesperadas nascem da associação livre entre imagem e texto.

A máquina alimenta-se do olhar. Questiona-o. Reinventa significações para cada certeza. Mina todos os preconceitos do objecto.

Um rosto surge por trás de cada forma, cada extensão, cada avanço sobre as possibilidades da existência da coisa. Esse rosto é diferente de cada vez, diferente para cada olhar. A identidade do artista surge como um embuste, uma farsa, encenação de impossibilidades teóricas, contradição das contradições – estou aqui e não estou, existo e não existo... existo só para si, de cada vez diferente.

A máquina, catapulta de imagens mentais, funciona na medida em que cada um a toma como sua, a apropria, e assim desenrola a infinidade de soluções subjacentes às suas próprias intenções misteriosas. Uma imagem nunca diz verdade e nunca mente. Apenas abre possibilidades.