quinta-feira, janeiro 26, 2006

O menino sem coração: Parte 2


Fugiu o melro e com ele toda a hipótese de existência do amor no menino sem coração. Ainda que habitado por outra identidade, mais uma, o melro mesmo assim fugiu, acometido pelo mesmo nojo, pela mesma repugnância que outras vezes tinha sentido.
O menino percebe então que tinha arquitectado gaiolas douradas e tal fora o seu desejo de manter o melro junto de si que nunca as tinha vislumbrado de tão reais que eram. Se o amor pelo melro foi o seu primeiro sentimento será também aquele que o levou à consciência do monstro em que se tinha tornado ou que sempre fora.
Era agora no seu peito, onde um buraco morava, que ele sentia, arritmado, um bater louco, desordenado. Um vazio enorme ameaçava o colapso e o menino sentiu próximo o fim da sua existência. Foi então que sentiu uma lágrima. Por amor? Por momentos teve consciência de que já antes o tinha sentido.

Por Amor? Outra vez? O menino sabia que não podia dar ao melro outra alma. Sabia que no momento em que o seu bico voltasse a ser laranja e se abrisse para ele a sua morte estaria próxima.
Olhou à sua volta e os cardos que habitavam o seu mundo cresciam a grande velocidade. Mais pequeno, o buraco do seu coração apertava-se prenunciando o colapso imediato.
Tudo aquilo era ele, ele sabia, mas o bico do melro, aquele laranja forte, dava-lhe a sensação, embora errada, da possibilidade do conforto, e ele dificilmente lhe resistia.
Mas porquê outra alma. Ele sabia que esta não era a primeira. Que o melro já antes o tinha colocado ali… já antes a sua missão, o seu mundo, o buraco do seu peito, tinham sido refúgio, ainda que falsos e inoperantes, contra algo que ele não controlava.
E não era, afinal, ele próprio, no seu mundo, o principal culpado da fuga do melro?

Os picos dos cardos eram agora apetecíveis e inúmeras viagens ao seu encontro pareciam inevitáveis.

1 comentário:

Diana Paula Soares disse...

até a caliagrafia é do principezinho. x,)