domingo, julho 26, 2015

O sistema dual Austríaco serve a Portugal?


fonte: jornal Público de 26 de junho de 2015

Ao lermos esta notícia do Público sobre o sistema dual na Áustria ficamos inicialmente com a impressão de que encontramos o paraíso. Quando avançamos na notícia e, sobretudo, quando avançamos na interpretação do que representa o que está la escrito a imagem perfeita começa a desvanecer e uma outra bem diferente emerge. A tentação básica é imitar o "paraíso" mas rapidamente este modelo se pode tornar num "inferno". Vejamos: 
  1. O desenvolvimento industrial da Áustria é muito diferente do português e com ele desenvolveu-se este modelo de formação dentro das empresas. São cerca de 500 anos de história a ligar a formação industrial e as empresas. Por outro lado o mercado interno austríaco é muito mais pujante. É um país mais rico com uma economia mais forte e virada para dentro. As empresas têm uma cultura de formação diferente da nossa. Ou tinham. O modelo de mercado de trabalho neo-liberal implementado por toda a Europa vai estourar com a colocação de jovens nas empresas muito em breve e já há sinais disso. Os depoimentos na notícia mostram isso mesmo.
    “No passado, fazia-se a aprendizagem numa empresa e ficava-se lá a vida toda até à idade da reforma. Agora é como em toda a Europa, há uma maior mobilidade das pessoas”

    "é cada vez mais difícil encontrar empresas que aceitem aprendizes."
  2. Na sociedade austríaca o trabalho manual não é tão visto como trabalho menor em termos do seu estatuto social e a diferença salarial é menor. Por cá a nossa cultura impõe um olhar completamente diferente em termos sociais e os salários fazem muita diferença. O trabalho manual é uma condenação à pobreza e ninguém deseja ser pobre. Não se pode imaginar que alguém o aceite. Uma coisa está ligada à outra, a um menor estatuto corresponde um nível de recompensa salarial menor. Não é verdade que o mercado neo-liberal seja meritocrático ou reproduza a produtividade económica, ele é sobretudo preconceituoso e conservador. Tende a manter no poder os que já lá estão com o argumento da estabilidade. A Áustria já percebeu isso e o seu modelo é um forte entrave à mobilidade social. Os ricos mantêm-se ricos e vão ficando mais ricos e os outros amanham-se. As tensões criadas são insustentáveis e o modelo começa a quebrar e pede mudanças.
  3. O sistema austríaco é um sorvedouro de dinheiro público que qualquer troika consideraria impensável. Os subsídios de desemprego são altíssimos para jovens e um rendimento anual inferior a 30 mil euros fica isento de impostos. Bem vistas as coisas se estes números fossem avançados para a Grécia dariam origem a imensos posts indignados no facebook. Não vejo como seja possível em Portugal, com a nossa cultura empresarial, financiar as empresas para formação de jovens sem que isso se tornasse num gigantesco modelo para criar trabalho barato. Para além do mais o sistema austríaco mascara o desemprego jovem:
    “Se tivermos disponibilidade financeira para pôr no terreno medidas muito variadas, pode-se ‘esconder’ muitas pessoas que, de outro modo, estariam desempregadas, reconhece Peter Dominkovits."
  4. O que se tentou fazer em Portugal nada tem a ver com a Áustria, apenas as partes más ou nem isso. Não há apoios ao emprego jovem e os cursos "vocacionais", só por se chamarem assim não vão absorver a eficácia do sistema austríaco. São uma cópia de fraca qualidade que não produz emprego nem formação específica de qualidade. Não há dinheiro para investir nem as empresas têm capacidade para oferecer emprego a quem quer que seja. Os estágios acabam por ser uma infindável fonte de trabalho gratuito ou pago pelo Estado. Para implementar um sistema destes tem de haver procura no mercado de trabalho (lembrar que na Áustria isto leva 500 anos). Em Portugal a única procura que existe é por trabalho gratuito. 
Em conclusão, é preciso ser muito inocente do ponto de vista político e educativo para se imaginar que se implementa um sistema destes em Portugal de um ano para o outro. Essa tentativa, desorganizada e sem fases definidas ou objetivos concretos vai degradar o sistema atual e acentuar a falta de mobilidade social já existente em Portugal com a agravante de que no nosso país acarreta uma grave assimetria económica. O nosso problema é sobretudo económico e cultural e não educativo. Aliás a fácil colocação no estrangeiro dos nossos profissionais é a prova disso mesmo.

Para reduzir o número de alunos a concorrer às Universidades o governo criou entraves à entrada aos alunos dos cursos profissionais ou vocacionais. Nuno Crato afirmou que queria metade dos jovens portugueses nestes percursos, daí se depreende que quer muito menos licenciados. Se em Portugal os licenciados têm mais emprego que os outros já se percebeu onde isto vai dar. Acentuam-se mais as diferenças. Por outro lado o discurso do ministro, contraditório ao modelo que ele próprio tenta implementar, vai no sentido de maior exigência e da crítica severa aos níveis de exigência científica do ensino português, atirando os percursos profissionais ou vocacionais para uma espécie de gueto educativo. O ministro acentua, com o seu discurso, o problema de imagem da formação vocacional que, por exemplo, já existe na Áustria e eles gostavam de resolver.

Não estamos preparados nem culturalmente (se alguma vez estivermos ou sequer se isso é desejável) nem economicamente para implementar o modelo austríaco. Um modelo baseado numa forte despesa pública e que ainda assim não promove a igualdade de oportunidades, instrumentalizando os mais pobres para as tarefas mais físicas e menos bem remuneradas. A austeridade moral dos germânicos e austríacos pode aceitar fardos sociais pesados com base na herança familiar mas isso não vai ser sempre assim e a coisa vai estourar mais cedo do que mais tarde.