Há um mito urbano a circular nos média, nas redes sociais e nos círculos de poder desde já há algum tempo. O mito de que Nuno Crato é um cientista que percebe de educação. Que domina o tema da administração e organização escolar. Que sabe muito.
É um mito falso, não é a verdade. Enraizado socialmente, este mito fundador de que o político domina a ciência por detrás do rito da governação do seu ministério, tornou-se um inquestionável sofisma na defesa de um conjunto de princípios de ação que estão longe de estar provados.
Como rito que é assistiu-se a uma autêntica peregrinação ideológica no sentido do que o senhor defende. Hordas de (pseudo) pensadores, seguiram a doutrina e afirmaram-na como verdade absoluta. O evangelho de Crato, denunciador de ímpios pensamentos que defendiam o "facilitismo" na educação sob o argumento romântico de que todas as crianças nascem boas e devem crescer, como as galinhas do campo, livres dos constrangimentos do saber e do conhecimento.
A consciência acrítica dos média vem agora aos poucos por em causa os princípios do senhor ministro. Parece que afinal, lá na Europa, uns senhores (doutores da verdadeira área em que Nuno Crato se doutorou) publicaram um estudo que comprova duas coisas:
- O paradigma do mercado e da livre escolha aplicado simplesmente ao sistema educativo tem efeitos negativos nos resultados.
- Os princípios pedagógicos, curriculares e organizativos do sistema educativo português, concebidos e implementados pelos adeptos do "eduquês" romântico e construtivista, melhoraram os resultados e aumentaram a equidade das aprendizagens entre os alunos.
Curiosamente os mesmos média recusam-se ainda a aceitar que o mito possa ser falso. Como exemplo convocamos Rui Costa que no Expresso afirma que "Nuno Crato chegou ao governo com uma vantagem sobre boa parte dos seus colegas. Ao contrário de muitos ministros tinha um pensamento continuado e sólido sobre a área que foi chamado a dirigir." Nada mais errado. Tinha um livro recebido com desdém pela academia. Nem um artigo científico nem uma formação académica relevante sobre educação ou sobre políticas educativas.
Agora, a propósito de uma prova completamente inútil de acesso à profissão docente, o ministro Nuno Crato apresenta como justificação a sua "desconfiança" na formação dos professores das Escolas Superiores de Educação. O ministro cientista, pelos vistos, toma decisões com base no instinto, em pressentimentos ou pior, com base no preconceito. Não há ciência na base das opiniões sobre educação e sobre formação de professores.
Vejamos algumas contradições no seu discurso:
- Nuno Crato cria uma prova com duas componentes. Uma prova para "capacidades mínimas" de conhecimentos transversais e competências de raciocínio. E uma outra prova de conhecimentos científicos nas áreas específicas de lecionação. Não há pedagogia à vista.
- Nuno Crato acha que os professores sabem pouco das matérias científicas que lecionam mas não desconfia tanto das capacidades pedagógicas que, segundo diz, vão ser avaliadas dentro do sistema, na avaliação de desempenho. No entanto quando fala da necessidade da prova justifica-a com a necessidade de um profissional provar que sabe fazer aquilo para que é contratado. Como os professores são contratados para dar aulas... não se entende.
- Mas Crato em entrevista à RTP afirma, faltando à verdade, que os professores que entram na profissão não foram julgados antes. Na verdade todos os professores profissionalizados passam por um estágio, aulas assistidas e realizam cadeiras de didática específica das áreas para as quais estão formados. Isto ele não diz ou não sabe.
- Mas porque sabem tão pouco das suas áreas os professores? Se acederam ao ensino superior, ainda que a escolas politécnicas (atenção que estou a ser irónico), e com o 12º ano concluído com sucesso, qual é o problema? As escolas selecionam mal? Para isso o ministro tem duas respostas - Exames à entrada dos cursos e alteração dos currículos dos mesmos. Ora bem, por exemplo, o curso de Educação Básica da Escola Superior de Educação de Lisboa exige, à entrada, o exame de Português mais um dos seguintes: Biologia, Geologia, Filosofia, Física e Química, Geografia, História ou Matemática. Chega? Faça você mesmo a pesquisa para outras escolas neste link. Por outro lado os currículos das Escolas Superiores de Educação sempre foram supervisionados pelo próprio ministério que ele tutela e têm sido suficientes. O PISA está aí para o provar.
Se Crato considera que os resultados do PISA são fruto apenas da aplicação dos exames do básico e da divulgação dos resultados das escolas, o que está a dizer é que os professores têm todas as capacidades e só lhes faltava a obrigação da prestação de contas para serem eficazes. Não é isso que ele diz quando defende a prova. O que o Ministro quer é "os melhores" a dar aulas. A frase mais dita é "os melhores". Melhores como quem? Como ele? Não tem formação superior na área da educação e é ministro. O primeiro ministro? Esse é um dos melhores? Hummm... Os boys contratados para o governo acabadinhos de sair das faculdades e tão saltitantes nas hostes da JSD? São esses os melhores?
Por exemplo, quando se trata de escolher pessoas para o Conselho Científico das Ciências Sociais e Humanidades da Fundação para a Ciência e Tecnologia, escolhem-se os melhores? Ou os amigos?
Mas por falar Ciências. Que provas científicas tem Nuno Crato de tudo o que afirma? O que apresenta o estatístico Crato como defesa das suas teorias? Nada. Não tem um estudo, um trabalho. Tem uns livros americanos a defender a educação competitiva em regime de mercado livre num país em que as estatísticas e os estudos provaram que essas mesmas estratégias aprofundam as desigualdades, diminuem a igualdade de oportunidades. Mais nada.
Nuno Crato defende um sistema educativo que promove a reprodução social
Nuno Crato é o ministro cientista sem ciência. É um preconceituoso da educação que toma medidas com base no que culturalmente foi acreditando que é a escola e não no que realmente ela é. Com não-ciência a conduzir a sua cadeia de decisões Crato não vai resolver problema nenhum.
O título deste post foi inspirado no site Bad Science de Ben Goldacre, cronista de ciência do The Guardian.
1 comentário:
Muito bom. Claríssimo raciocínio.
Enviar um comentário